Bem vindo ao blog de Dartagnan da Silva Zanela, Cristão católico por confissão, caipira por convicção, professor por ofício, poeta por teimosia, radialista por insistência, palestrante por zoeira, bebedor de café irredutível e escrevinhador por não ter mais o que fazer.

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Ainda a educação grega


Platão aprovava o adestramento dos jovens na técnica dos debates, mas achava que o modo pelo qual os sofistas a ensinavam arriscava corromper os alunos, viciando-os em contestar tudo e qualquer coisa e fazendo deles discutidores vazios que, confiantes no poder ilimitado da refutação, acabavam por não acreditar mais em nada. Tornavam-se contestadores cínicos e carreiristas amorais:

“Os muito jovens, quando tomam gosto pelas argumentações, usam delas como de um jogo, recorrendo a elas sempre com um intuito de controvérsia, e, a exemplo daqueles que os refutaram por completo, eles mesmos refutarão outros, obtendo prazer, como cãezinhos novos, em nos puxar e dilacerar com argumentos, cada vez que nos aproximamos deles... Quando, no entanto, houverem refutado um grande número de pessoas e grande número de pessoas os tiver refutado com uma queda brutal e rápida, ei-los que chegam a não acreditar em mais nada daquilo em que acreditavam antes. Ora..., o homem de mais idade não consentirá em tomar parte nesse delírio, mas imitará antes aquele que consente em dialogar e em buscar a verdade, em vez de imitar aquele que, na controvérsia, joga um jogo pelo prazer de jogar.” (A República, VII, 539 b2-c8.)

A arte de fazer da discussão um método para a investigação da verdade em vez de um simples jogo ou de um meio de subir na vida, foi precisamente o que Sócrates introduziu na educação grega e que Platão aperfeiçoou sob o nome de dialética. O público que se dirigia a Sócrates para aprender essa arte não se constituía, pois, de crianças nem de adolescentes, mas de adultos jovens e mesmo não tão jovens que já haviam passado pelas duas etapas iniciais da educação grega: a formação literária e artística e o adestramento para as discussões públicas. Com Sócrates eles aprendiam um tipo de discussão em que já não se tratava de vencer um adversário, mas de confrontar idéias e hipóteses diversas e conflitantes com a finalidade de encontrar os princípios comuns que davam a razão de todas elas e assim avançavam um passo em direção à verdade do objeto discutido. Esse exercício era tão alheio à busca de vitórias sofísticas, que tanto podia ser realizado em grupo quanto individualmente, tanto em voz alta como em pensamento.

Aristóteles apreciava a dialética socrático-platônica e a empregou abundantemente nas suas investigações filosóficas, julgando-a mesmo o único instrumento científico viável nos assuntos novos e inexplorados, onde não se dispõe de nenhum princípio ou premissa geral e se trata precisamente de buscá-los pela primeira vez. A sistematização aristotélica da dialética no livro dos Tópicos constitui, historicamente, a primeira formulação geral daquilo que mais tarde viria a chamar-se “método científico”.

No entanto, Aristóteles descobriu que no fundo das confrontações dialéticas existia um critério subjacente, não formulado, para a aferição da coerência dos discursos. Toda discussão dialética visava a encontrar as premissas, os princípios fundantes para o estudo desta ou daquela questão, premissas ou princípios dos quais se pudesse então tirar conclusões válidas. Mas, de um lado, a dialética não tinha por si nenhum meio de distinguir se essas premissas eram absolutamente verdadeiras ou eram apenas mais razoáveis do que aquelas das quais a discussão havia partido. De outro lado, todo o esforço dialético era guiado por um ideal de coerência discursiva que a  própria dialética não chegava a explicitar. O que Aristóteles fez foi então tornar explícitas as exigências contidas nesse ideal e formular o conjunto de regras que se devia seguir para atingi-lo. Foi essa arte que ele denominou analítica, mais tarde chamada “lógica”.

Aristóteles ensinava essa arte no Liceu, a escola que ele fundou e que era uma espécie de upgrade especializado da Academia platônica. Os alunos que vinham aprender lógica com ele já chegavam, portanto, com todo o preparo que haviam recebido nas três etapas anteriores: a formação literária e artística, o adestramento sofístico para as discussões públicas e a dialética socrático-platônica.

Essa breve narrativa mostra que tanto a história da evolução da educação grega quanto a gradação das etapas do aprendizado seguido por cada novo aluno já continham, implicitamente e na prática, a escala dos graus de credibilidade que Aristóteles formularia na sucessão dos discursos poético, retórico, dialético e lógico-analítico, à qual dei o nome de “teoria dos quatro discursos”. Essa coincidência de escalaridade entre a evolução histórica de uma cultura e a estrutura das etapas do aprendizado em cada aluno individual sugere que a ordem interna da educação grega é mesmo um modelo ideal, no sentido em que sugeri acima.

Onde quer que tenha surgido uma classe intelectual e dirigente capaz, apta para as mais altas tarefas da inteligência e da vida política, a educação que a preparou seguiu em linhas gerais o modelo grego. A administração colonial britânica é um exemplo. A série quase inteira dos presidentes americanos é outro. A partir do momento em que as escolas negligenciam a transmissão dos valores universais e permanentes e caem na esparrela de querer infundir nas crianças o culto do que é mais recente e passageiro – sob o nome pomposo de “conquistas avançadas da ciência e da técnica” ou qualquer outro – o resultado é sempre decadência, barbárie, estupidez generalizada. A educação brasileira é o exemplo mais nítido.

Publicado no Diário do Comércio.

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