Por Rafael de Mesquita Diehl
Quando estudamos História, devemos sempre distinguir bem os fatos históricos das interpretações, juízos e impressões sobre eles. Pesquisa e análise históricas, via de regra, provém do estudo de fontes e documentações históricas (de diversas naturezas: escritas, artísticas, orais, etc), de interpretações e de discussões com outros estudiosos sobre o tema. Algumas interpretações tornam-se célebres, quer pelo prestígio dos que as formularam, quer por estarem inseridas em uma corrente de pensamento de grande amplitude no contexto em que o estudo foi produzido. Excetuando-se os historiadores e pesquisadores de áreas afins, raramente as pessoas têm contato direto com as fontes históricas, de forma que geralmente passam a conhecer a História de maneira indireta, mediante as interpretações mais conhecidas e comuns construídas pelos estudiosos.
Em um mundo de intenso movimento e mudanças tecnológicas, somos frequentemente tentados a ver os conhecimentos da área de Humanidades como algo decorativo, de pouco valor prático. Assim, desvaloriza-se o estudo da História. Não pretendo nesse texto fazer uma longa defesa da utilidade da História, mas reportei-me a esse dilema porque penso que um dos argumentos para rebatê-lo é o fato de que a História pode ser instrumentalizada para diversos fins – predominantemente para objetivos políticos e ideológicos.
A instrumentalização da História consiste em transformar – através de uma interpretação distorcida - um contexto histórico em uma forma de legitimação de uma ideologia. Na semana passada, o colunista Luís Guilherme Pereira – neste mesmo site – abordou a temática da ideologia enquanto tentativa artificial de encaixar a realidade dentro de uma determinada maneira de conceber o mundo, distorcendo ou turvando a mesma realidade.
Talvez a forma de instrumentalização histórica mais famosa seja a materialista, de origem marxista, ainda reinante em grande parte dos nossos livros didáticos. A análise materialista tende a ver a economia como causa de todos os eventos históricos, movidos por uma constante tensão dialética entre grupos socioeconômicos antagônicos – a chamada “Luta de Classes”. Assim, por exemplo, toda a história medieval européia é rotulada como uma economia feudal, dividida entre senhores feudais exploradores e servos camponeses explorados. Todas as complexas querelas entre o poder secular e o eclesiástico passam a ser vistas como uma simples disputa pelo controle de uma massa camponesa alienada.
O período medieval é onde podemos ver mais claramente essa instrumentalização histórica, quer pela imagem “anticientífica” que os iluministas rotularam a Igreja Católica, quer pela dicotomização simplista da “economia feudal” feita pelos marxistas.
A instrumentalização histórica é também uma forma de anacronismo, mas de fato, muito mais refinada que a interpretação nacionalista do século XIX. A instrumentalização histórica materialista ou relativista busca revestir-se de cientificidade, e usar-se de interpretações distorcidas para justificar revoluções, regimes totalitários ou a relativização total dos costumes. Tudo sob o pretexto de formar um “cidadão crítico”, cujo ápice de sua “reflexão” resume-se a repetir interpretações históricas de terceiros, quando não apenas slogans ou chavões empobrecidos.
Investir em um estudo mais aprofundado da História, buscando uma maior proximidade com as particularidades contextuais não é necessariamente uma forma de desprezar os bons manuais antigos e a experiência dos historiadores que nos precederam, mas significa sim aprofundar e aprimorar o conhecimento que nos foi legado. Só assim poderemos combater eficazmente a instrumentalização ideológica da História, mostrando através de um bom estudo das fontes que os contextos históricos diferem das distorções ideológicas construídas sobre eles.
Buscar conhecer a História com um maior contato com as fontes e reportando-se à diversos pesquisadores, cruzando os dados e confrontando diferentes interpretações é uma forma de opor-se à instrumentalização ideológica da História. Não se trata de defender um relativismo absoluto, mas apenas de ponderar que enquanto os fatos são objetivos, as interpretações humanas são subjetivas e falíveis. Trata-se tão somente de reconhecer que o conhecimento humano é produzido com erros e acertos e não com interpretações iluminadas de ideólogos que almejam dar ares dogmáticos a objetos que não são matéria de Revelação Divina.
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