Bem vindo ao blog de Dartagnan da Silva Zanela, Cristão católico por confissão, caipira por convicção, professor por ofício, poeta por teimosia, radialista por insistência, palestrante por zoeira, bebedor de café irredutível e escrevinhador por não ter mais o que fazer.

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O PROGRESSISTA

Por Flávio Gordon

Terá o leitor alguma vez se questionado sobre o sentido do termo “progressista”, ou será tal curiosidade nada mais que uma impertinente idiossincrasia do autor destas mal digitadas? No primeiro caso, peço que ele acompanhe-me nas reflexões que se seguem; no segundo, que faça o mesmo, pois, se cedeu à insensatez de gastar o seu precioso tempo lendo este parágrafo introdutório que ora já se encaminha para o fim sem nada dizer, seria ainda mais insensato tê-lo gasto à toa, sem ao menos, no fim das contas, poder conferir-lhe algum propósito, quando nada o de concluir entredentes – “ora, mas que artigo mais cretino”.

Eu, insisto, tenho grande curiosidade pelo termo em questão. O que é um progressista, afinal? Dentro da minha área de formação, a antropologia social, a idéia de progressismo está inexoravelmente atrelada ao século XIX e ao zeitgeist científico de então. O progressista era alguém que acreditava estar em posição de apreender a totalidade (as “leis gerais”) da história, por meio da adoção, por analogia, dos métodos das ciências naturais, segundo o cânon positivista. Se Darwin descrevera as leis que supostamente presidiam a evolução da natureza, autores como Herbert Spencer, Henry Lewis Morgan, Edward Tylor, James George Frazer, entre muitos outros, pretendiam estar fazendo o mesmo em relação à cultura e à história, entendida de maneira teleológica (do grego telos: “meta”, “alvo”, “objetivo”) e unilinear, ou seja, como convergindo para um mesmo ponto.

Alguns daqueles autores passariam a ser conhecidos na história das idéias como “darwinistas sociais”, embora Spencer, por exemplo, tenha começado a formular suas teses antes da publicação de A Origem das Espécies. Se a obra de Darwin causou, sem dúvida, um impacto profundo em todo o universo intelectual e científico da época, o fato é que, ela própria, inseria-se num “clima de opinião” mais amplo, que vinha desde o século anterior, e que já apostava na concepção de que a natureza – o homem, incluso – evoluía gradualmente de formas mais simples para formas mais complexas. Em 1794, por exemplo, ninguém menos que Erasmus Darwin, avô de Charles, escrevera em seu Zoonomia uma síntese do naturalismo teológico de então, advogado, entre outros, por Kant: “O mundo mesmo deve ter sido gerado antes que criado; ou seja, deve ter sido gradualmente produzido a partir de pequenos começos, desenvolvendo-se pela ação de seus princípios inerentes mais do que através de uma súbita evolução total vinda do fiat do Todo Poderoso. Que idéia magnífica do poder infinito do grande arquiteto! A Causa das causas! O Pai dos pais! Ens Entium! Pois, se nos for permitido comparar infinitos, pareceria requerer uma maior infinidade de poder causar a causa dos efeitos do que os efeitos eles próprios”.

No contexto das ciências sociais do século XIX, as diferenças observadas, num eixo espacial e geográfico, entre as muitas culturas humanas foram transpostas para uma escala temporal, na qual os homens eram classificados de acordo com o seu “grau” de evolução. Era comum na época a adoção de uma divisão tripartite da história cultural da humanidade, separada em “fases” evolutivas. Presente já na antropologia filosófica iluminista[1] – especialmente em autores como Turgot e Condorcet –, tal esquema celebrizou-se no século XIX por meio da “lei dos três estados” de Augusto Comte, que influenciou a classificação evolutiva de Morgan em “selvagens” (povos caçadores-coletores), “bárbaros” (agricultores) e “civilizados” (as sociedades complexas da Europa e Estados Unidos); e também a de Frazer (“magia”, “religião” e “ciência”). O progresso de fase a fase era, na famosa expressão de Morgan em A Sociedade Antiga (1877), “tanto natural como necessário”.

Por meio da observação comparativa entre sociedades distintas no tempo e no espaço, os evolucionistas acreditavam ser possível registrar a totalidade do progresso cultural humano; registrar, inclusive, os sinais de transição entre as etapas evolutivas, transição essa que sempre deixava vestígios de etapas anteriores. Em A Cultura Primitiva (1871), Tylor cunhou o termo  “sobrevivências” para se referir a tais vestígios. Elas eram, para o antropólogo, aquilo que os fósseis são para o paleontólogo.

Foi também no século XIX que o progresso cultural humano deixou de ser um mero objeto de estudo e converteu-se em ideologia e programa político, dando origem ao que, efetivamente, compreendemos ainda hoje por “progressismo”.

Seguindo a exortação de sua famosa 11a Tese sobre Feuerbach, pela qual o filósofo já não devia apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo, Karl Marx – um dos pais do progressista contemporâneo – elaborou a sua filosofia milenarista da história. Se os antropólogos sociais limitavam-se à classificação e interpretação da evolução cultural, Marx queria pôr esse conhecimento a serviço da revolução. Seu companheiro Friedrich Engels baseou-se integralmente no livro de Morgan para escrever A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), um projeto que Marx morrera sem conseguir realizar, e que consistia em utilizar as mais recentes descobertas antropológicas da época para comprovar a tese do materialismo histórico.

À diferença dos antropólogos sociais, para Marx e Engels, as “sobrevivências” – artefatos, instituições, costumes e tradições de épocas e povos tidos por menos evoluídos – não deviam ser preservadas e documentadas, mas superadas, por constituírem obstáculos à marcha histórica rumo ao comunismo. Surge então o anátema definidor do progressista: o “reacionário”, que é a transposição do conceito de “sobrevivência” para a esfera do juízo político. O progressista é, essencialmente, alguém que vê com desprezo aqueles a quem considera “reacionários”. No campo da história política, tal desprezo converte-se quase sempre em violência física ou moral. Marx e Engels levavam muito a sério – mais do que os marxistas de hoje gostariam de admitir – a noção que, inspirado em Darwin, Spencer denominou de “a sobrevivência do mais apto” (ver o pós-escrito de O Homem contra o Estado, de 1884).

No capítulo 14 de Revolução e Contra-Revolução na Alemanha (1851-52), Marx e Engels criticam o reacionarismo do movimento pan-eslavista, fazendo uma defesa da superioridade germânica e da necessidade de esmagar a tentativa dos eslavos de recuperar uma existência nacional independente em face da unificação alemã. Os autores argumentam que o destino histórico “inevitável” daquelas “nações moribundas” (sic.) era o de “permitir que se completasse este progresso de dissolução e de absorção pelos seus vizinhos mais fortes”, os alemães. Ressalvando que aquela certamente não era uma perspectiva agradável aos “sonhadores pan-eslavistas”, os dois questionavam: “mas podem eles esperar que a história volte atrás mil anos a fim de agradar alguns grupos humanos tísicos (sic.) que, em toda a parte do território que ocupam, estão penetrados e rodeados de alemães?” Insistindo no caráter reacionário e contra-revolucionário daquelas etnias, Marx e Engels prosseguem: “Traidores da causa popular, partidários e principais suportes da cabala do governo austríaco colocaram-se, eles próprios, aos olhos de todas as nações revolucionárias, na posição de fora da lei.” Os primeiros esforços pan-eslavistas já haviam sido frustrados em 1848. No entanto, os autores faziam um alerta: “Se eles tentarem de novo, com pretextos semelhantes, aliar-se à força contra-revolucionária, o dever da Alemanha é claro. Nenhum país num estado de revolução e envolvido numa guerra externa pode tolerar uma Vendée[2] no seu próprio seio.”

Já em “O Conflito Magiar”, artigo publicado em janeiro de 1849 na Nova Gazeta Renana, periódico editado por Marx, Engels demonstrara o mesmo desprezo pelos reacionários eslavos, qualificados por ele com o termo Völkerabfälle, que poder-se-ia traduzir como “lixo étnico ou racial” (Völker = plural de “povo”, “nação”, “etnia” + Abfälle = plural de “lixo”, “detrito”, “dejeto”). Para o autor, aqueles povos eram “fanáticos porta-estandartes da contra-revolução”, e continuariam assim “até o seu completo extermínio ou perda de seu caráter nacional”. A expressão original em alemão traduzida aqui por “completo extermínio” é gänzlichen Vertilgung, sendo que este último termo, um substantivo feminino, costuma ser usado para se referir ao extermínio de pragas e insetos. Segundo George Watson, historiador da literatura socialista (ver A Literatura Perdida do Socialismo, 1998), essa era uma das primeiras vezes na história contemporânea em que o genocídio fora advogado de maneira tão explícita.

No regime soviético, desde os tempos de Lênin, e em particular durante o Grande Terror stalinista, acusações de “reacionarismo” formavam a base para todo tipo de violência e perseguição. Stálin e Trótsky acusaram-se mutuamente de “reacionários” até que o primeiro encerrasse de vez a discussão com o irretorquível argumento da picareta. Na China de Mao Tsé Tung, os “reacionários” eram silenciados com tiros na nunca. E até as crianças eram incentivadas a “matar automaticamente os reacionários” (ver Mao: A História Desconhecida, de Jung Chang e Jon Halliday, 2005).

Mas não foram só os comunistas que usaram e abusaram do expediente. Os nazistas – os seus “gêmeos heterozigóticos” (na expressão de Pierre Chaunu), ou a “outra face de Janus” (como preferiu A. James Gregor) – também apontavam os seus “reacionários”: entre eles, é claro, os judeus. Não se pode esquecer que a Canção de Horst-Wessel, hino do Partido Nacional-Socialista Alemão, inicia-se, com aquele sentimentalismo para com os seus tão típico da alma revolucionária, rogando aos camaradas “fuzilados por reacionários e pela Frente Vermelha” que marchassem em espírito nas fileiras nazistas.

O leitor, se é que ainda está aí, talvez já tenha começado a ver alguma vantagem, comparativa que seja, em ser chamado de “reacionário”. Parece restar evidente que pior seria identificar-se com aqueles que, ao longo da história, têm acusado os outros de sê-lo.

É pena que, em geral, a classe falante brasileira não pense assim. Basta abrir os jornais, ou ligar a televisão, para topar com uma série de palavras e expressões que compõem o campo semântico progressista – “avanço”, “atraso”, “moderno”, “ultrapassado”, “progresso”, “retrocesso”. Ministros do STF fundamentam suas decisões com loas “à ciência moderna” contra as “trevas” (o adjetivo “medieval” também é muito utilizado nesse contexto, para sugerir que alguma opinião ou atitude é velha, ruim e atrasada). Jornalistas inventam “momentos históricos” a cada cinco minutos. A frase “isso já não é mais tolerável em pleno século XXI” é repetida por todas as bocas, como se à passagem dos séculos correspondesse um evidente aprimoramento moral do homem e da sociedade, o que, à luz da história, é uma tese no mínimo duvidosa. Quem se opõe, ou manifesta a mais mínima ressalva, a eventos tidos como especialmente avançados (curiosamente, quase todos meras re-encenações enfadonhas da hybris modernista ou da contra-cultura, envolvendo sex lib, feminismo, políticas da identidade e outras miudezas pretensamente transformadoras), é logo tratado como um estorvo (alguns como cachorros hidrófobos), quando não um inimigo do bem comum – uma incômoda “sobrevivência”, enfim.

O progressista tem a mente aberta. Sabe o caminho que todos devemos percorrer para atingir o estágio final de evolução, o fim da história. Sabe, por exemplo, que o beijo gay na novela da Globo é um destino histórico inexorável que nenhum Marcos Feliciano poderá impedir. No milênio progressista, cartunistas do sexo masculino poderão frequentar banheiros femininos. (Será proibido, aliás, dizer que o cartunista é do sexo masculino se ele assim não o quiser). E ai do reacionário que tente barrá-lo na porta. Teremos famílias poliafetivas (“afeto” é o nome do “sexo” progressista), transespecíficas e até inter-reinos (quem ainda não conhece os OS, objectum-sexuais?[3]). Teremos mais e mais presidentas, estudantas e gerentas. Teremos – momento histórico! – o primeiro presidente (president@, presidentX?) cross-dresser. Teremos a democracia direta. Teremos a “voz das ruas” como fundamento do Direito. Teremos a OAB do B. Teremos Wagner Moura. Teremos Marcelo Freixo. O Brasil inteiro será um grande Esquenta da Regina Casé. O grito de “Set Genoíno Free!” ecoará nos rincões mais obscuros da pátria. Abram alas para o progresso, pois o futuro é glorioso. Tremei, reacionários! – talvez diga o Vladimir (o nosso). “Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar”, diz efetivamente o poeta. “Eu odeeeeeeeeio a classe média”, a antiga musa canta.

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[1] Embora alguns autores, entre eles os filósofos Karl Löwith (ver O Sentido na História) e Eric Voegelin (ver A Nova Ciência da Política), façam recuar aquela forma mentis até o século XII, com a separação proposta pelo monge calabrês Joaquim de Fiore (1131-1202) entre as “três Idades da História”, correspondentes às três pessoas da Santíssima Trindade.

[2] Alusão ao motim contra-revolucionário na Vendée (província ocidental da França), desencadeado em 1793 pelos realistas franceses, que utilizaram o campesinato da província para a luta contra a Revolução. Os historiadores estimam que cerca de 170.000 pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram mortas a sangue frio pelos revolucionários comandados pelo general Louis-Marie Turreau. Muitos franceses reivindicam atualmente que o massacre seja qualificado oficialmente como “genocídio”. Que o leitor compreenda bem: quando Marx e Engels afirmam não ser tolerável uma nova Vendée, eles não estavam condenando o genocídio. Justo o contrário, estavam elogiando a ação dos revolucionários e repudiando a existência mesma da contra-revolução, sugerindo ainda que o dever da Alemanha em relação a um eventual levante pan-eslavista era o mesmo cumprido pelas tropas de Turreau: esmagar a contra-revolução.

[3] Ver: www.buzzfeed.com/mjs538/the-15-hottest-objectum-sexual-relationships

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